Delinear sobre o que possa ser o patrimônio de uma instituição museal não é
tarefa simples, pois os teóricos que contribuem para o pensamento da museologia
entendem que patrimônio precisa ser compreendido como algo muito além dos
artefatos, peças, objetos e documentos em geral que particularizam o acervo de uma
instituição dessa natureza. A expressão substantiva "patrimônio", numa acepção maior,
precisa também abranger o universo humano, o agir do homem no hoje como
consequência natural das relações entre as pessoas, e destas com as suas instituições e
tudo o mais que pode ser reunido, construído e produzido pelo pensamento.
Vale dizer que, quando o homem interage com um museu, não apenas o visita,
mas sobretudo se identifica como ser social. Tudo que decorre do meio e sua relação
com o agente transformador, além de suas consequências, precisa ser considerado como
patrimônio, seja material ou imaterial. Portanto, um espaço museológico deve ser
compreendido, antes de tudo, como uma construção social, cuja importância vai se
assomando na medida em que o ambiente do espaço museológico, como marca dos
registros humanos, não se dissocia dos fazeres e saberes que norteiam a sociedade,
ainda que setorizados e/ou individuados para atenderem às exigências de um contexto,
de uma temática ou de uma comunidade.
Essa produção vai se firmando de modo a se constituir, com o passar do tempo,
num acontecer que se constrói natural e culturalmente. Como cultura se firma
coletivamente, a ponto de edificar o que possa representar os fatos e, por decorrência, a
memória, essa representação traduz os aspectos memorialísticos que não se dissociam
do agente modificador, pois estão intrinsecamente relacionados. Essa assertiva pode ser
melhor explicada pela afirmação do Prof. Mário Chagas quando diz: "Se fôssemos
apenas memória não seríamos humanos." Todavia, a concepção de memória num
conceito mais acessível, sob o ponto de vista da importância dos acervos serve com
vantagem para reconstruir o elo de tudo que é produzido pelo seu agente produtor, o
homem. Dessa maneira, consegue-se justificar tudo aquilo que acaba reunido a título de
preservação para salvaguardar a memória dentro do que possa ser considerado de valor
histórico.
Inaugurado em janeiro de 2021, o Centro de Cultura e Memória do Poder
Judiciário de Alagoas - CCM foi concebido para ter o relevante papel fortalecedor da
cidadania, possibilitando que o seu usuário perceba, na sua interação com esse novel
ambiente museal, quais as funções de um espaço de memória e, dentre essas funções,
qual aquela em que o visitante, como agente, exercita o seu direito à cidadania. O
significado das peças guarda em si relevante fatia da nossa memória judiciária, através
de documentários produzidos a partir de fontes primárias ou secundárias, para resgate
de importantes momentos da nossa sociedade, pelos registros da história oral, ou ainda,
por cada conjunto de informações.
Mário Chagas, ao afirmar a dimensão cidadã da cultura, demonstra a missão
educativa de um espaço de memória, cuja interação faz evoluir o diálogo entre uma
instituição pública e o beneficiário de seus serviços, de modo que toda sociedade que
dispõe de espaços culturais desse jaez fortalece os laços do que é a atividade cidadã sob
espectros de justiça e de direitos. Nessa atuação, desmistifica-se a ideia de que o museu
serve tão somente como espaço de acumulação. Prova-se, em verdade, que se trata de
espaço de relação, pois permite e facilita o entendimento de que a passagem de geração
para geração forma uma riqueza patrimonial, que não engloba apenas acervo físico, mas
sobremaneira o incessante intercâmbio entre pessoas. Nada que é humano é estranho ao
museu, posto que o atual contexto social é sempre resultado final da ação recíproca dos
indivíduos. Assim, cabe afirmar que um museu precisa ser concebido como um espaço
democrático em eterna formação.
O Centro de Cultura e Memória de Alagoas, literalmente, continua em
construção, já que por ora foram disponibilizadas apenas as três salas frontais do seu
prédio, edifício que remonta a 1912, e hoje, sede histórica do Tribunal de Justiça de
Alagoas.
A primeira sala dispõe da "Linha do Tempo", na qual constam dados sobre
todos os Desembargadores que já tomaram assento no Tribunal de Justiça de Alagoas,
desde a sua instalação em 1892, de maneira a possibilitar um interessante passeio
cronológico pela história da justiça alagoana e suas personagens. Ainda, apresenta
objetos e obras raras de juristas e escritores alagoanos, a exemplo de Pontes de Miranda
e Graciliano Ramos. O visitante pode também tomar conhecimento das primeiras
mulheres que exerceram a Magistratura em Alagoas, e do valor dessa inserção para a
valorização do feminino na vida administrativa, além de colher importantes dados sobre
o primeiro impeachement ocorrido no Brasil - o polêmico caso da deposição do então
Governador de Alagoas Sebastião Marinho Muniz Falcão, em 1957, episódio de
extrema relevância para explicar o perfil político da sociedade da época.
A referida sala conta também com manuscritos dos antigos Ouvidores de
Comarcas, alguns datados do século XVIII, e outros documentos valiosos, a exemplo do
Primeiro Regimento do Tribunal Superior de Alagoas, de 1892, além da exposição da
Vara Branca do chamado Juiz de Fora, e da Vara Vermelha do Juíz Ordinário - bastões
em madeira com símbolos da coroa portuguesa, cujo uso era imposição das Ordenações
Filipinas (1603). Expõe-se, pela primeira vez, a Ata de Instalação do Poder Judiciário de
Alagoas, cujo paradeiro era desconhecido há mais de um século, vindo à tona
recentemente em razão de pesquisas nos acervos para a construção do Centro.
A segunda sala, como vão central, contempla o CCM com uma belíssima
maquete que retrata a sua própria sede, onde é possível, através de tecnologia de ponta,
fazer uso de terminais de computadores com recursos touch screen, para acessar ricos
documentários sobre episódicas passagens da historiografia alagoana, como a biografia
de Luiz Lucarini, arquiteto que projetou o referido prédio; sobre o Quebra de Xangô de
1912; sobre a magnífica Coleção Perseverança - conjunto de artefatos da arte negra
existente no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas; sobre a lendária figura de
Delmiro Gouveia - sagaz empreendedor pioneiro no uso dos recursos hídricos para
geração de energia elétrica no sertão alagoano; além de outros registros plotados.
Já a terceira sala foi escolhida para recepcionar informações, imagens,
documentos e obras sobre temáticas destacáveis relacionadas com as minorias sociais,
com as conquistas da mulher, com a causa do racismo e seu vínculo com o período da
escravatura, com o período da ditadura de 1964, além de dispor de totens eletrônicos.
O propósito maior é recuperar a memória relativa aos personagens e
acontecimentos ligados à Justiça em Alagoas desde a posse do primeiro Ouvidor Geral
em 1712. Para tanto, o acervo das antigas Comarcas, tem sido reunido para tratamento,
catalogação e posterior exposição, afim de democratizar o conhecimento da atividade
forense, proporcionando um ganho sociocultural para o Estado de Alagoas.
Claudemiro Avelino de Souza
Curador do CCM/TJAL